Em junho de 2025, Dourados respirou a própria história. Entre o cerrado queimado pelo sol e o rio que carrega sussurros indígenas, a Câmara Municipal transformou-se em arena de memórias vivas. Sob o céu que viu tropeiros e trens da Noroeste cruzarem destinos, JAMINHO, escritor e guardião das sombras esquecidas, desfiou fios de identidade em um diálogo que ecoa como um chamamé de resistência. Aqui, onde o tempo é marcado pelo aviso do tereré, as palavras desse escritor reordenaram silêncios, desenterraram vozes e reinventaram uma mitologia que não se curva a fronteiras — apenas às raízes que nos tornam purutuya, karaí. Esta entrevista é um mapa afetivo, traçado entre feridas e reinvenção, para quem ousa ler o sul-mato-grossense não como legado, mas como eterna construção.
TÁCITO LOUREIRO. Seus personagens carregam lembranças como ferramentas de sobrevivência psíquica. Como o ato de ‘reordenar’ essas memórias – muitas vezes fragmentadas pela violência da fronteira – se tornou um ato político de resistência contra o apagamento cultural em Mato Grosso do Sul?
JAMINHO. A tradição oral do Mato Grosso do Sul é muito forte, complexa, colocá-la em prosa literária, contos, foi desde lá na minha juventude uma missão, um objetivo a ser alcançado. Pois bem cedo, me dei conta de que havia este ‘apagamento’ para com os mais humildes, os remediados, os mestiços, os bugres,… Que suas existências não constavam com detalhes e justificativas nas páginas escritas.
E que havia várias narrativas de elogios e apreciação aos fazendeiros, aos abastados (nem sempre verdadeiras). E de silenciamento ou revelação das histórias dos mais simples em menor escala e quase sempre em tons mais realistas. Também se silenciava aos ricos, os feitos e fatos que faziam, mas não se enquadravam na moral vigente; todavia, os atos dos mais humildes, dos remediados, eram contados e comentados nas rodas de tereré, de mate, nos churrascos, sem maiores censuras ou pudores – e até com inverdades para macular caráter e aumentar a fama de “sem-vergonha” destas personagens.
A decisão não foi apenas de resistência política, mas também por serem as histórias silenciadas, os segredos guardados a sete chaves, as narrativas aumentadas e distorcidas (a ser ‘reordenadas’), representarem um lastro de pertencimento, fatores de caracterização e importância cultural para história social do MS, tanto quanto um material ímpar para literatura.
TÁCITO LOUREIRO. O rio, o cerrado e a terra não são apenas cenários, mas agentes transformadores da psique em suas narrativas. De que forma esses elementos naturais moldaram uma espiritualidade própria nos colonizadores, distinta da religiosidade institucionalizada?
JAMINHO. Penso que a natureza, a paisagem, o isolamento sabotaram a religiosidade judaico-cristã trazida pelos colonizadores. E a “espiritualidade própria” foi se fazendo permutando, misturando e agregando as crenças dos povos ancestrais, os gestos, os rituais, benzimentos e especialmente a medicina popular, pohã nana.
Como descobri – se é que descobri…? É que o tema é fascinante e muito presente em minha vida desde a tenra infância. Se até mesmo Jorge Luis Borges disse que um escritor se torna melhor e mais sincero quando escreve sobre o que gosta… Por que não eu? – já bem cantou o roqueiro Leoni. Porém, busco equilibrar o fascínio pela natureza, o esplendor desta (especialmente em tempos já ados, pois hoje se encontra muito degradada) com as ações, a primazia destas, do cidadão, do humano sul-mato-grossense; a importância do social. A psicoterapeuta Maria Cerezer disse que minhas narrativas, em especial no Punhal Enluarado, são exemplos de, dialogam com, a ecolinguistica.
TÁCITO LOUREIRO. Seus ‘causos’ revelam segredos familiares, mas também silenciam tabus (conflitos indígenas, disputas de terra não resolvidas). Como equilibrar o resgate afetivo das memórias com a necessidade de confrontar essas sombras históricas ainda pulsantes?
JAMINHO. Não, não penso que silencio sobre os tabus citados, apenas não escrevo com um narrador ativista, reivindicador, panfletário. E isso gera o equilíbrio que o perguntante sinaliza: as disputas de terras e violência contra os indígenas possuem autores mais referendados, muito melhor documentados e em cargos e posições institucionais para realizar a missão. O Poder Judiciário aí está para fazer cumprir a lei.
Todavia, inúmeros de meus contos revelam e descreve o preconceito, a exploração, e mesmo a ignorância da sociedade sobre o valor, a inestimável presença de técnicas e saberes das diversas etnias na/para a Cultura Social MS. Afinal, somos purutuya, karaí.
TÁCITO LOUREIRO. Há uma fisicalidade brutal na luta pela sobrevivência que você descreve: fome, doença, violência. Como essa marca no corpo dos pioneiros ecoa na identidade corporal e na relação com a terra das gerações atuais sul-mato-grossenses?
JAMINHO. Que pergunta!! Parabéns, e obrigado! Veja que quase nada comentei sobre a lepra, a doença-de-chagas, malária, febre-amarela,… As gerações atuais significam que vencemos muitas batalhas, que muitos dos monstros e dificuldades a serem enfrentados diminuíram em quantidade e letalidade; embora novos problemas de saúde tenham surgido por conta do estilo de vida urbano, moderno, ultrassedentário.
Do ponto de vista do trabalho e da estética corporal, ficamos mais saudáveis e bonitos, mas perdemos em disposição, ação, heroísmo! As mulheres perderam menos, muito menos. Nós homens, precisamos nos precaver para não resvalar e cair no fosso dos cuiudos de cocheira, bovinos de confinamento e frangos de granja em nossos ambientes de trabalho climatizados, pouco ou nenhum exercício, alimentação ultraprocessada, etc.
Fotografias dos Anos 60, 70 (ou mais antigas) e as de 2010 para cá, revelam, expõe, e confirmam as transformações. Somos uma descendência que deveria copiar mais e reverenciar menos, a fisicalidade do corpo dos “nossos velhos”. E um sul-mato-grossense hoje, jamais iria dançar com uma paulistana e a chamar num elogio de ‘vaca bagual’… Ele não tem essa metáfora nos arquivos. Ela o rechaçaria indignada!, e ofendida.
TÁCITO LOUREIRO. As mulheres em suas obras frequentemente sustentam o ‘espírito de luta’ de forma não romantizada – na dor, no pragmatismo, na preservação clandestina da cultura. Que arquétipos dessas mulheres fundadoras você vê ressoar nas mulheres contemporâneas do estado?
JAMINHO. Vejo que hoje poucas querem ar, sofrer dores. E que a am menos. A sociedade atual via medicina ou comunicação, quase apagou a dor. No restante, espírito de luta, subversão ou manutenção da cultura, o fazem a seu interesse e objetivo, não mais para apenas sobreviver e criar os filhos, quiçá os netos e bisnetos. Não confirmo que havia ‘clandestinidade’ na afirmação cultural das mulheres, há e houve muito protagonismo, afirmação. E muitas das narrativas que conheço, das que ouvi de primeira ou segunda versão, foram feitas por mulheres. A Literatura oral do MS que me interessa mais e sobre a qual me debruço, é contada por nossas Sherazades.
A evolução dos usos e costumes inseriu a mulher no trabalho urbano e citadino e a independizou muito do homem, da vida familiar (esposa/mãe). A mulher arrimo de família ou parceira do marido no sustento da família tornou-se a tônica social. E surgiram e obtiveram visibilidade e direitos mais famílias homoafetivas.
Por outro lado, a transformação restringiu e mesmo extinguiu o trabalho de força, de valentia, do homem (fazer roça, conduzir boiadas, cavar poço, construir casas, mangueiros, estradas, etc.). E o que restou é menos, bem menos, e no mais das vezes tido como de pouco valor, requer pouca ou nenhuma escolaridade. É mal pago.
TÁCITO LOUREIRO. A fronteira é ao mesmo tempo ferida aberta e espaço de reinvenção. Como essa dualidade – violência/possibilidade, isolamento/liberdade – forjou uma psicologia específica no sul-mato-grossense, diferente até mesmo de outros estados fronteiriços?
JAMINHO. Penso que dois episódios que se relacionam são os responsáveis, a saber. O início da Guerra da Tríplice Aliança que uniu e mobilizou as populações do território, as diferentes etnias ameríndias e as famílias de fazendeiros; bugres, mestiços e brancos –em destaque o período de dezembro de 1864 (avanço de Urbieta, de Resquin e de Barrios) até julho de 1867, final da Retirada da Laguna. E o segundo derivado do primeiro: O período de implantação e expansão da economia ervateira que atraiu paraguaios e gaúchos também normatizou mesclando restrições e permissões a ocupação da terra e o trabalho nela dentro de suas circunscrições; essas décadas misturou ainda mais gentes, os Guarani, Ofaié, Terena e os fazendeiros vindos de Minas (antecessores), agora com os gaúchos e os mais necessários (especialistas na extração e beneficiamento da erva-mate)paraguaios.
Nossa história e cultura são marcadas e derivadas desse caleidoscópio-barbakuá. Apaixonante, mestiço, sobrevivente… Oficial, fugitivo e/ou contrabandeado!! Pipipopopupupuúú’!
TÁCITO LOUREIRO. Ferramentas, adornos, utensílios domésticos aparecem como vetores de memória. Como esses objetos cotidianos se tornaram símbolos demarcatórios da identidade regional, carregando histórias que documentos oficiais ignoram?
JAMINHO. Nos meus textos, parti do princípio (Karl Marx) de que a história se faz com o trabalho humano, é produzida, é efeito, é resultado dele. Então, o simbolismo é evidente. E as minhas personagens surgem utilizando essas ferramentas, executando x, y e z atividades que existiram de fato, que foram responsáveis por dar sustento (alimentação e moradia), promovendo intercambio, comércio e outras relações entre as pessoas.
Os documentos oficiais não os esquecem sempre, mas quando os citam, registram apenas por motivos econômicos. Minha sorte foi que os mais velhos gostavam muito de me contar histórias, de recordar mutirão para fazem rancho, casa; rodeios, bagualeadas, carneadas, fazeção de farinha e polvilho, entre outras narrativas. E também vi e participei de feitura de chipelo, de chiripá; engraxar tralha de montaria, fazer manutenção de laço com chumaço de guanxuma; puxei água de poço, rocei com foice (muito mal) e com estrovenga (com algum êxito). Apertei queijo, que não comemos… Dormi em rede, fui apanhar lenha, acendi fogo.
Entre a dedicação do pesquisador e as memórias apaixonadas do guri está o Alef que contém os “símbolos demarcatórios” do MS.
TÁCITO LOUREIRO. Você menciona ‘o nosso jeito de amar’. Haveria uma conexão entre a aspereza do contexto histórico e uma expressão do amor mais contida, pragmática ou mesmo sublimada na luta coletiva? Como o amor romântico sobreviveu nesse ambiente?
JAMINHO. O amor romântico acaba sempre sobrevivendo, ter ideais é humano, demasiadamente humano. Mas no território do Sul do Mato Grosso ele foi quase sempre maculado porque o casamento foi arranjado, imposto (e depois se tornou amor), o casal feliz e realizado, tempos idos, fugiu, desobedeceu aos pais, não acatou as ordens e o “modo certo” de fazer as coisas…
As pessoas na base da escala social, só se casavam se o patrão autorizasse, ou se sumissem no mundo, contrariando quem mandava. Os cidadãos do meio ou do ápice da pirâmide, se casavam via arranjos e conveniências, para muitos sobrava o plano B, até mesmo o C; logo, nem sempre o casamento era feliz, tranquilo, bem ordenado; histórias de adultério, traição e as violências contra a mulher na qual desembocavam, foram muitas. Também há inúmeras narrativas sobre homens que se casaram com herdeiras de grandes ou medianas quantias, e que entre cinco e dez anos, tinham acabado com a fortuna, pois ao homem cabia istrar as finanças familiares.
As uniões inter- étnicas eram muito frequentes, comuns; toleradas por alguns, condenadas por outros, embora nunca elogiadas e desejadas (salvo por quem as efetivava).
Os bordéis eram um comércio lucrativo, sustentável, oportunizavam sexo (e distração) a uma população masculina muito grande… O sexo casual e o estupro eram frequentes, ainda mais com mulheres das populações ameríndias.
Nossos “jeitos de amar” seria uma expressão mais fidedigna. E o erotismo, o desejo levados as últimas consequências, realizados; os sentimentos que foram desafiados, as leis e normas que foram implodidas, formam um manancial impossível de ser ignorado/silenciado se pensamos e produzimos Literatura MS.
TÁCITO LOUREIRO. Seu resgate do ado não é saudosismo, mas combustível. Como essas memórias de ‘empenho’ e ‘conquista espiritual’ podem ser mobilizadas criticamente pelas novas gerações para projetar um futuro para Mato Grosso do Sul além dos estereótipos?
JAMINHO. Leitura e mais leitura, debate, análise, estudos comparativos… Feiras literárias, congressos, eventos culturais & educativos.
Escolas e Universidades tem uma deliciosa missão para oportunizar a nova geração sobre “o que somos porque fomos”. Um dos problemas é que a data de 11 de outubro é feriado, integra a semana do saco cheio. Seria interessante se ter datas com eventos de estudo, seminários, semana cultural, voltada para elementos identitários e demarcatórios do MS.
Os jovens, sempre tão curiosos e contestadores, precisam arregaçar as mangas, mergulhar na história e cultura do MS. Ir mais além e mais profundamente. Já somos pantaneiros, temos que nos assumir purutuya, karaí, ecaleigui. O Turismo e o Poder Público pouco tem feito, pois o estereótipo do MS já é muito atraente, rentável e, ô tristeza, agrada e é aceito por grande parte da população, pelos ditos consumidores – e eleitores.
TÁCITO LOUREIRO. Mato Grosso do Sul carrega o peso de ser ‘filho’ de MT e ‘vizinha’ de SP. Como sua literatura atua na descolonização imaginária do estado, criando uma mitologia fundadora própria que independe dessas referências externas?
JAMINHO. Historicamente, somos pai de um filho rebelde, fagócito financeiro e econômico. Espécie de irmão siamês. E afilhados duma capital distante e inalcançável. Lindeiros dum estado voraz e ponta de lança da história e cultura brasileira vinda para cá. E de onde saíram os primeiros aportuguesadores de nosso território.
Para a Literatura, nascemos do Amor entre o Tenente Taunay e Antônia Terena.
Mas somos um caldeirão de etnias ameríndias, historicamente relegadas, quando não, combatidas. “Mato Grosso encerra em sua própria terra sonhos guaranis”… e guató, e ofayé, e terena, kinikinawa e ejiwadegui.
Não me esqueço do canto das caravanas de carretas. Do berrante e do tropel das comitivas boiadeiras. Sigo o poeta: esquecer quisera, o som dos fuzis… Alembro das fainas nos ervais. Do apito do trem da Noroeste…
Nós já éramos nós, antes do presidente Ernesto Geisel fazer registro em cartório. E não somos matéria para principiantes, embora soframos com os palpiteiros.
Essa “descolonização imaginária” penso que a realizo seguindo o mestre Platão: escrevo em busca da verdade, escrevo para e pelo bem, e o belo, ah o belo, coloco as formas e os adornos MS. E o feio, se lho amo! Canto e conto como a kuña gaivi, que sempre será mescla de deusa e pantera.
